segunda-feira, 11 de outubro de 2010

HISTÓRIA E LITERATURA

Tânia Rousselet Possani

História e Literatura, de Luiz Antonio de Assis Brasil (2000), trata sobre as possíveis relações entre a história e a literatura, para as quais, segundo o autor (p.257), se faz necessária a revisão de algumas questões conceituais, pois, “de um lado há a história, que tem função descritiva e reflexiva ao mesmo tempo, ou seja, descreve o episódio histórico em sua verdade factual, analisando-o sob o ângulo crítico, através de diversas correntes teóricas. De outro lado, está a literatura, cuja verdade restringe-se simplesmente ao âmbito estético.”
Assis Brasil destaca que nenhuma dessas áreas está disposta a abrir mão dessas qualificações. Há uma espécie de “acordo”, através do qual nem a história faz literatura – a não ser no plano formal – para não perder seu vigor, nem a literatura deve pretender a escritura da história, para não comprometer sua identidade. O autor acrescenta que não se pode deixar in albis, ou seja, em branco, o fato de que o diletante da história, aquele que gosta de história, mas que não é historiador, quase sempre a lê como se lesse um livro de literatura, pois, no texto histórico, estão presentes os elementos da narrativa literária: enredo, personagens, tempo, espaço, etc. Alguns historiadores se destacam mais pela suas virtudes narradoras do que pela imparcialidade e cientificidade de seu texto. Razão pela qual justifica-se a discussão em torno dessas relações e, de uma certa forma, a agrava.
Devido ao seu compromisso estético, não se pode exigir da literatura o paralelo com a descrição e interpretação do fato, pois os parâmetros para sua crítica situam-se no plano da teoria literária. Além disso, a literatura trabalha com um elemento vital: a ambigüidade, a qual abre as portas da fantasia do leitor. Isso jamais poderá ser aceito pela história, que não pode deixar da razão integradora e racional. Porém, se retirada a ambiguidade da literatura, como diz Assis Brasil (p.258), “meios-tons, subtexto, zonas crepusculares e inefáveis: eis a matéria prima da literatura”, haverá o relato. Sob esse olhar, a literatura está longe dos objetivos da história.
Observando sobre o “famigerado” romance histórico, conforme designa Assis Brasil (p.258), é um gênero supostamente inventado pela pós-modernidade. O autor argumenta que “essa expressão é usada sem nenhum critério para qualquer forma narrativa que ocorra no passado, ou que envolva personagens históricos, ou que, de uma forma ou de outra, refira-se a acontecimentos pregressos. “Dessa forma, o romance tradicional, designado pela crítica e, há pouco tempo, muito apreciado por leitores menos exigentes, é o texto narrativo no qual o autor abdica de seu tempo, torna-se apenas uma testemunha dos fatos, procura agir como as personagens históricas pensariam ou reagiriam, e tenta reconstruir, através da ficção, o episódio histórico, detalhe por detalhe, batalha por batalha, feito heroico, por heroico. Como se pode constatar nos escritores Walter Scott, Alexandre Herculano e Paulo Setúbal. Nesse caso, o papel do escritor é absolutamente passivo, pois à luz do documento – tal como faria o historiador – pretende reconstruir a história, preenchendo cuidadosamente as lacunas, criando supostos diálogos, descrevendo cenários e levantando hábitos e práticas culturais.
O autor do dito romance histórico de hoje, como destaca Assis Brasil (p. 259), tem uma atitude diferente, que resulta num texto também diferente do romance tradicional, pois o compromisso do autor de hoje é com o estético, e, por isso, não renuncia a seu próprio tempo. “É alguém que rememora o episódio histórico, mas sem arredar pé de sua condição de intelectual de hoje, com critérios de hoje, com valores de hoje, com a estética de hoje, e com profunda intencionalidade.” Motivo pelo qual, autoriza-se não a interpretar, mas a reinterpretar o fato no processo narrativo. Assim, ele pode comentar, projetar, deformar, formulando hipóteses como se fossem realidade; enfim, comporta-se como um verdadeiro artista. Como não tem compromisso com o fato material, pode inclusive criá-lo ou suprimi-lo. É o caso de Saramago, seu romance Memorial do convento é uma visão pessoal e ideológica sobre a construção do convento de Mafra, mas em nenhum momento esse autor se deixou seduzir pela documentalidade, pela descrição pura e simples, pela reconstituição. E isso eleva essa obra ao patamar de autêntica literatura.
Assis Brasil declara que é muito simples a razão dessa audácia reinterpretadora: é que o romancista não faz história. O motivo é verdadeiro, as vertentes são factuais, no entanto, o texto resulta em literatura. Assim, pretender que o chamado romancista histórico contemporâneo seja fiel ao documento é o mesmo, por exemplo, que negar a pintura, que, segundo alguns afoitos, teria sido superada depois da invenção da fotografia.
Ainda não se chegou a um consenso. Assis Brasil (p.260) diz que tudo o que foi dito anteriormente é abalado por uma questão inquietante e sempre ignorada: quando começa a história? Ontem? Há uma semana? Há dois anos? Parece que os historiadores ainda não chegaram a um consenso. O que pensar de romances como Agosto, de Rubem Fonseca, que desenvolve sua trama em 1954? Ou Mês dos cães danados, de Moacyr Scliar, situado no período da Legalidade de 1961? Se um romance se situasse à sua volta da ascensão e queda de Collor, como classificá-lo? Como enquadraríamos o texto romanesco que envolvesse as múltiplas coligações que levaram à vitória do presidente Fernando Henrique Cardoso? Estamos nos aproximando dos dias atuais, isto é, da história in Jieri - seria isso um romance histórico? Assis Brasil (idem) ressalta que, a pensar dessa forma, teríamos de considerar como histórica as obras como Os Maias, A comédia da vida humana, Tom Jones e Madame Bovary, que tratam de situações históricas rigorosamente contemporâneas à vida do autor.
Além disso, há nuanças que devem ser consideradas: se A guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa, está razoavelmente limitado ao fato histórico, há obras que subvertem e carnavalizam a história, como A cidade dos padres, de Deonísio da Silva. Neste último, as personagens misturam-se de modo tumultuário, desenvolvendo assincronias fascinantes. O fato histórico está lá, mas desfigurado pela licença da ficção. Também estamos ante um romance histórico, com tantas ambigüidades? Seguindo a reflexão, Assis Brasil (p.261) instiga, perguntando como enquadraríamos um romance como O nome da rosa, de Humberto Eco, passado em plena Idade Média, mas que discute a teologia e a prática eclesiástica? De amor e outros demônios, de Garcia Márquez – cuja ação acontece no século VVIII – seria um romance histórico, apesar de ter todos os elementos de uma literatura de caráter introspectivo? Mesmo o texto intimista, talvez o menos histórico de todos, deve possuir cenário social e político que, por vezes, até decide as ações das personagens, fazendo-as agir de determinada maneira. Werther e seu dilema amoroso é o resultado das múltiplas intersecções da moral setecentista, às voltas com o romantismo nascente. Isso é cultura, logo, é objeto da história.
Dessa forma, Assis Brasil (p.261) finaliza seu texto com a reflexão de que “considerando essas ideias que nos conduzem às impossibilidades da definição do gênero romance histórico, e ainda para radicalizar, tendo como evidente que a narrativa ficcional sempre estará situada num determinado tempo e num certo espaço – na história, portanto – fica a pergunta: não será histórico todo e qualquer romance?”

ASSIS BRASIL, Luiz António. Literatura e História in: masina, Léa; APPEL, Myrna Bier. A Geração de 30 no Rio Grande do Sul: literatura e artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade, 2000.


segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A HISTÓRIA DO CINEMA

INÍCIO DO CINEMATÓGRAFO: 28 de dezembro de 1895, no subsolo do Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris , tendo como organizador Antoine Lumière.
Seus filhos Auguste e Louis construíram um aparelho para fins de obtenção e visão de provas cronofotográficas (um meio de análise do movimento por meio de fotografias tiradas sucessivamente com intervalos iguais, que são exatamente as medidas que dão a ilusão de movimento e constituem o fundamento teórico do cinema).

O filme é basicamente uma história contada em imagens, mas que por trás dela, há outra longa história: a do cinema, que por muito tempo desenvolveu e estabeleceu métodos sobre como narrar um acontecimento.
A primeira exibição pública do filme dos irmãos Lumière, A chegada do trem na estação Ciotat, foi vista com espanto pelos espectadores.
A cena vista hoje nos parece simples: um trem aparece ao longe e entra em uma estação, vindo em direção a Câmera, que assustou os espectadores, como se o trem fosse invadir a sala do cinema.
Os irmãos Louis e Auguste Lumière pareciam não ter muita consciência de terem criado um meio de expressão importante e diziam até que o cinema era uma invenção sem futuro.
No final do século XVIII, o cinema começa a tomar forma artística através do francês Georges Méliès, um ilusionista, que oportunamente percebeu a potencialidade da câmera de filmar. Ele criou a trucagem (efeitos especiais), em princípio, por acaso, quando a câmera dele parou, e ao voltar a funcionar, depois do filme pronto, ele viu que os objetos e as pessoas não ocupavam as posições anteriores e que poderia fazer sistematicamente essas paradas, dando a impressão de que fazia surgir e desaparecer coisas, como um ilusionista.
Méliès encantou o público da época com filmes em que um diabo bem-humorado tirava as coisas do lugar. Entre os filmes: Viagem Lua, Viagens de Gulliver, Aventuras de Robinson Crusoé, episódios da história francesa como O caso Dreyfuss e Joana d’Arc, mas infelizmente entrou em decadência na primeira década no século XIX.
Os filmes, no início do século XX, imitavam os espetáculos teatrais, assim como qualquer outra arte que começa. A câmera ficava imóvel para os acontecimentos e os espectadores em poltronas, como para assistir a uma peça.
Paulatinamente, isso vai se modificando, com a câmera acompanhando os atores em movimento. Logo após, vai mostrando as cenas, ora de perto, ora de longe, dependendo do que a cena exige. A isso se dá o nome de montagem (vários planos que se encaixam), e, finalmente, se constituem numa linguagem cinematográfica.
Em 1903, o americano Edwin S. Porter produziu e dirigiu um filme de oito minutos: The Gret Train Robbery. O cinema inicia sua trajetória como arte popular nos EUA, e os filmes curtos de ação emergem como indústria.
O cinema está sempre mudando:
1º - porque é uma arte muito recente;
2º - é uma arte cujas ideias e tecnologias andam lado a lado.
A invenção de unir som e imagem mudou a própria natureza dos filmes, mas isso não representou um avanço na linguagem cinematográfica, porque o período de maior desenvolvimento da linguagem se situa nas décadas de 10 e 20, quando os filmes eram mudos.
Filmes que se destacaram nesta fase:
 Ouro e Maldição de Eric Von Strohein (1925, EUA);
 O Encouraçado Potemkin de Eisenstein (1925, URSS):
 Metrópolis de Fritz Lang (1926, Alemanha);
 Fausto de F. W. Murnau (1926, Alemanha);
 Napoleão de Abel Gance (1925-7, França;
 Sangue Mineiro de Humberto Mauro (1928, Brasil) e
 Limite de Mário Peixoto (1930, Brasil).
Dentre os diretores, o mais importante foi D. W. Griffith, um americano que estabeleceu os fundamentos da montagem da narrativa do cinema. Ele descobriu que poderia alterar as várias dimensões do plano com a câmera, afastando, aproximando e cortando atores, obtendo diferentes tensões dramáticas.
A Avant-Gard, movimento da década de 30, libertava o cinema da influência da literatura, com Luis Buñuel (influenciado pelo surrealismo e o cinema poético de Jean Vigo e René Clair (Nós e a liberdade e Paris dorme).
O inventivo cinema alemão que na década de 20, foi influenciado pela arte expressionista e as técnicas do teatro clássico do período, no início dos anos 30 estava virtualmente morto.
Na passagem do cinema mudo para o sonoro, o equipamento pesado atrapalhava a mobilidade da câmera e fez a linguagem regredir. A Warner Bros., um estúdio com problemas financeiros, apostou em um processo que juntava som e imagem e iniciou as filmagens de Cantor de Jazz, de Crosland, o que provocou um aperfeiçoamento dos roteiros, porque os diálogos deveriam aparecer na tela e os atores teriam de interpretá-los com uma boa dicção.
O som era uma tecnologia nova, mas obrigava mudanças na produção e na linguagem.
Na Inglaterra, o primeiro filme sonoro do mestre Alfred Hitchcock, Chantagem, é de 1929, que inicialmente era para ser mudo, mas durantes as filmagens decidiram que seria sonoro.
Nos anos 40, temos um novo estágio no cinema. Com o lançamento de Cidadão Kane, em 1941, os EUA, criam uma novidade narrativa, o flasback. Mas Welles, introduziu novas tecnologias e interferência da voz narrando certas situações, o que contribuiu para o fracasso do filme na ocasião. Hoje, no entanto, é considerado um dos melhores filmes de todos os tempos.
Com Roma, cidade aberta, de Roberto Rosselini, surge o neo-realismo, termo lançado em 1943, por um crítico e roteirista italiano, Umberto Barbaro. O movimento se desenvolve na Itália pós guerra, e ao mesmo tempo em que é uma reação ao cinema acadêmico e esclerosado, quer descrever a sociedade italiana traumatizada pelos vinte anos de fascismo. Parece que o termo foi empregado pela primeira vez em 1943 pelo produtor Mario Serandrei para se referir a Ossessione (1942), de Luchino Visconti. Mas Roma, cidade aberta faz explodir o neo-realismo somente dois anos depois, e foi rodado pelas estradas de Roma, durante os dois últimos dias da ocupação alemã, com a película recuperada entre materiais de documentários de propaganda.
A partir de Roma, cidade aberta, o cinema italiano floresceu, e em poucos anos produziu uma das maiores obras-primas pós-guerra: paisà (1946) e Alemanha, ano zero (1947), também de Rosselini.
O período de ouro do neo-realismo terminou no início dos anos 1950. Rosselini rodou ainda alguns filmes de prestígio, como II miracolo, com Anna Magnani e um jovem ator Frederico Fellini. Em 1952, abandonou o gênero narrativo e dedicou-se a documentários e à reconstrução de eventos históricos em produções televisivas.
Em 1953, Luchino Visconti dirigiu Sedução da carne, que marca a passagem do neo-realismo para o realismo, ou “poética da perseguição”, que retoma a tradição romântica do século XIX.
A experiência do neo-realismo se fechou com Umberto D, e depois vieram muitos filmes que traíam o sentido profundo do neo-realismo. Entre eles Pão, amor e fantasia (1953), de Luigi Comencini, com Gina Lollobrigida em início de carreira.
No campo cômico-popular, a herança do neo-realista é visível na série de Giovanni Guareschi dedicada ao personagem dom Camilo, que foi sucesso de bilheteria. O legado do neo-realismo influenciou também grandes nomes do cinema italiano entre 1950 e 1960, como Michelangelo Antonioni e Fellini.
Na década de 60 surgiu a Nouvelle Vague (nova onda) na França, com grupo de jovens cineastas e, paralelamente, em outros países, surgiam com outros nomes como no Reino unido, Polônia, Brasil e Alemanha com o intuito de regenerar uma cinematografia em declínio e, assim, contribuiu para o cinema francês.
O êxito dos filmes, devido ao talento dos jovens realizadores, favoreceu a produção de numerosos longas-metragens.
A Nouvelle Vague não foi considerada uma escola estética tão autêntica como o free cinema britânico ou o neo-realismo italiano, mas as transformações econômicas do cinema francês e as ajudas públicas contribuíram para a sua expansão.
Alguns nomes e sucesso: Cavalier, Marker, Mocky, Demy, Rivette, Rohmer e, especialmente, Godar e Resnais.
No início dos anos 60 o cinema brasileiro começa a se destacar internacionalmente, com os filmes do Cinema Novo. Apesar de no fim dos anos 40 surgirem companhias de grandes estúdios como a Vera Cruz, a Multifilme, a Maristela, houve um fracasso. A partir daí, no Rio de Janeiro, um grupo de jovens intelectuais abre caminho para um cinema brasileiro desvinculado dos grandes estúdios, barato, com equipamentos leves, mostrando o Brasil de maneira realista.
Surge a expressão “estética da fome”, que abordaria aspectos intrínsecos ao povo brasileiro, que se constituiu numa estética própria.
Nas décadas de 70 e 80 a estética de vanguardas torna-se cada vez mais rarefeita e o modelo de Hollywood impõe-se novamente. Mesmo assim, em 90, o “cinema do autor” renova-se. Os indies retomam o formato dos longas metragens artesanais, das escola de vanguarda, como underground dos anos 60, priorizando o discurso ficcional e o experimentalismo. Os roteiros são hipertrabalhados e a produção meticulosa. É um modelo clássico, que se utiliza da narrativa clássica, e concomitante faz intervenções na mesma.
A arte cinematográfica ainda é muito nova (100 anos), e por isso mesmo, muitas mudanças ainda vão ocorrer. Apesar de disputar espaço com a televisão, é importante saber que as duas formas são diferentes. Com certeza, o cinema ainda tem um longo caminho a trilhar, independente da chegada da tecnologia digital, há, ainda, um futuro para esta ilusão secular.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Sobre narrativas fílmicas

A obra Narrativas verbais e visuais: leituras refletidas de Juracy Assmann Saraiva (2003, Ed.Unisinos), trabalhada no nosso Curso de Especialização, “Ensino de língua, literatura e mídia, na disciplina de “Literatura e Cinema no Rio Grande do Sul”, ministrada pela Profª Drª Débora Mutter, mudou, em muito, a minha apreciação sobre obras literárias e cinematográficas.
Lendo essa obra, fui convidada ao exame comparativo, quase que detalhado, das narrativas de duas obras: uma cinematográfica, A River Runs Through It, produzida e dirigida por Robert Redford, e outra literária Don Casmurro, de Machado de Assis, as quais inseriram-me em um novo universo, ou seja, o da sutileza da construção das narrativas, que nos prendem a atenção, quando somos espectadores ou leitores.
O que mais me impressionou nesse estudo foi a narrativa fílmica, logo no seu primeiro capítulo, ao abordar a obra A River Runs Through It (Nada é para Sempre), na qual imagens, palavras, e também a ausência delas prendem os espectadores, receptores que compartilham da intencionalidade do autor, quando, na manisfestação e expressão, consegue cativar esse espectador-receptor para adesão ao contrato de veracidade.
Por contrato de veracidade, segundo Juracy Assmann, entende-se que: “ Diante de um texto narrativo, qualquer que seja sua linguagem, o receptor empírico desenvolve uma competência particular que lhe permite aderir às regras do jogo. Essa adesão desencadeia o diálogo do sujeito consigo mesmo e com o momento histórico da leitura, diante das referências, dos enunciados metafóricos, qualidades e valores da realidade, diante dos quais o sujeito se interroga e se posiciona, em um exercício de autorrevelação.

A River Runs Through It (Nada é para Sempre - título no Brasil ou Duas Vidas e o Rio - título em Portugal) , 1992 baseia-se em um romance semi autobiográfico de Norman MacLean. O livro conta a história do autor e sua criação religiosa de filho de pastor presbiteriano na Montana do início do século 20, Missoula. A família MacLean é comandada (espiritualmente) pelo reverendo MacLean (Tom Skerrit) e sua amada esposa (Brenda Blethyn). Apesar de ser rígido na educação de seus filhos, Norman (Craig Sheffer) e Paul (Brad Pitt), também os encoraja. Entre o reverendo e os filhos sempre houve o hábito de pescar, na verdade não havia uma clara linha que dividisse religião de pescaria. Norman e Paul não foram para a 1ª Guerra Mundial e, logo após o fim do conflito, Norman deixou Missoula e foi para a faculdade, onde descobriu que gostava de lecionar. Já Paul ficou trabalhando como repórter na sua cidade, pois gostava de se divertir, beber e jogar e nunca sentiu interesse em se envolver com o estudo acadêmico. Ao voltar para Missoula, Norman espera uma resposta para um emprego de professor e neste meio tempo se apaixona por Jessie Burns (Emily Lloyd). As diferenças entre ele e Paul ficam mais evidentes e, apesar de gostar da boêmia, Paul se mostra um bom pescador. Desde a infância, Norman (Craig Sheffer) viveu à sombra de Paul (Brad Pitt), o irmão mais novo. E ambos receberam do pai as noções de vida e amor por meio da pesca. Já adultos, Norman virou um homem respeitável e Paul, um jornalista sempre às voltas com encrencas de toda espécie .

No filme há uma beleza singular nas fotografias em sépia. São os elementos de imagem, resultantes do movimento da câmera, juntamente com a sonoridade do filme, ou seja, a música, pelo ruído das águas do rio, que criam significações à narrativa. A luz e a sombra das belas paisagens intensificam o encontro do homem com a natureza, tornando-se parte da narrativa. A compreensão e o envolvimento do espectador com essa narrativa se dá pela inferência das imagens e pela enunciação.
Acredito que para um diretor não deva ser uma tarefa fácil substituir o poder das palavras por imagens ou pelo silêncio, uma vez que as palavras dentro de uma narrativa fílmica, funcionam como um elemento importante. Porém, muitas vezes a câmera pode substituir o narrador. Imagens e sons são colocados à frente do espectador, despertando emoções diante das inúmeras situações apresentadas pela narrativa cinematográfica.
Para Assmann, a passagem constituída pela imagem do rio e do murmúrio da água, pelas palavras e pelas mãos que preparam a isca, pela música, pela sequência de fotografias, traz informações diegéticas, mas define igualmente a relação contratual, ou seja, estabelece regras próprias de um mundo fictício que, todavia, intenta impor-se como verídico.
A noção de tempo é trabalhada em duas dimensões: o cronológico e psicológico. O tempo cronológico se resume ao espaço de tempo passado desde a infância até a morte de Paul. O tempo psicológico é intenso, pois o narrador-protagonista (Norman) traz à memória os fatos passados de sua vida familiar e procura respostas para a morte de seu irmão (Paul), mas essas respostas não são elucidadas ao longo do desenrolar da ação.
Também pude observar a intensidade do discurso não-verbal, que vem sendo objeto de minha atenção e está me incentivando a estudar a significação das imagens no cinema: explícita, sendo o que se vê, e implícita, ou seja, o silêncio, porque, na minha visão, o silêncio antecede tudo. Ele fala.

Por fim, fica o convite para assistirem a essa maravilhosa obra cinematográfica e contemplar a riqueza da linguagem que nos hipnotiza e, ao mesmo tempo, nos domina, provocando, pelo poder das palavras, imagens e sons, emoções, reflexões e paixões.

Júlia Bicca