terça-feira, 14 de setembro de 2010

A SAGA DOS MUCKERS E SUAS REPRESENTAÇÕES


A imigração alemã do Rio Grande do Sul é uma história de promessas, lutas e sofrimentos, sucedida, após longos anos de glórias e pioneirismos contados por diferentes historiadores, muitos dos quais protagonistas ou parentes dos próprios personagens dessa mesma história.
Em 1824, chegaram ao Rio Grande do Sul os primeiros imigrantes alemães, atraídos para o Brasil sob a promessa de terras fartas e futuro promissor. Em princípio, eram 126 pessoas, vindas em dois navios, que desembarcaram em Porto Alegre, e, posteriormente, instalaram-se nas únicas terras desbravadas a serviço do governo, também distantes de Porto Alegre, uma localidade chamada Feitoria Velha e a outra, Estância Velha. A primeira destinava-se a fornecer o cânhamo para a produção do cordame, e a última, à criação de gado.
As terras ficavam às margens do Rio dos Sinos, na cidade que é hoje São Leopoldo. Na época, a primeira colônia fundada pelos alemães e batizada com esse nome em homenagem à Imperatriz D. Leopoldina. Os alemães não encontraram uma vida fácil, tiveram de desbravar as terras, abrindo picadas no meio da mata, padecendo aos perigos de animais peçonhentos e a um clima, muitas vezes hostil. Além disso, a proximidade com os índios, moradores primitivos desta terra prometida, careceu de grande habilidade e desenvoltura, a fim de uma convivência pacífica entre ambas as etnias e o choque cultural, natural entre povos muito distintos.
Aos poucos, esses imigrantes foram construindo cabanas em meio às florestas e descobrindo maneiras de subsistir, formando aqui e acolá pequenos núcleos coloniais, cultivando e consumindo seus próprios alimentos e criando animais de pequeno porte. Mais além, passados os sofrimentos dos primeiros anos, vieram os colonos a progredirem, pois souberam como ninguém, administrar suas colônias, produzindo dali, lucro e maior conforto, a cada ano, depois de incessante labuta.
No ano de 1874, após 50 anos da chegada dos primeiros imigrantes, aconteceu, entre esses colonos persistentes, um episódio sangrento que é conhecido como a Revolta dos Muckers.
Os Muckers (santarrões em alemão) eram colonos que moravam na cidade de Sapiranga, antes denominada comunidade do Padre Eterno, e que formaram uma seita religiosa, liderada por Jacobina Mentz Maurer e seu marido João Maurer. A colônia ficava aos pés do Morro Ferrabrás em Sapiranga, hoje, lugar conhecido pela prática de esportes radicais como paraquedismo, asa-delta e similares. A seita, que começara com alguns enfermos que procuravam por João Maurer, na verdade um curandeiro, a quem recorriam pela falta de médicos na região, cresceu e adquiriu, no final, em torno de 200 seguidores.
Pela falta de estrutura e descaso das autoridades governamentais, que muito prometeram e quase nada cumpriram, os colonos sentiam-se traídos e jogados à sorte. Não demorou muito para sentirem-se também desprovidos de uma assistência espiritual e educacional, procurando alento nas sessões de leituras bíblicas comandadas por Jacobina. A própria Jacobina se intitulava, segundo escritos históricos, enviada de Cristo e com uma missão de cura espiritual. Os seguidores da seita viam na líder uma verdadeira mãe, sendo capazes de segui-la e protegê-la contra qualquer adversidade.
A seita começava a incomodar pessoas influentes na localidade, deixando parte da população indignada e revoltada com a messiânica e as suas práticas religiosas. Houve muitos atritos e fofocas, até mesmo entre os parentes de Jacobina, uns que aceitavam e outros que eram contra a religiosa.
O fato é que o caso tomou proporções violentas quando mortes começaram a acontecer e, dali para frente, vários episódios sangrentos exigiram a interferência dos militares, comandados, numa primeira batalha contra os muckers, pelo Coronel Genuíno Sampaio. Nessa batalha, subestimando os colonos, os militares saíram derrotados e com vários soldados mortos. No entanto, numa segunda tentativa, tiveram êxito, em 18 de julho de 1874, matando vários muckers. Contudo, Jacobina e alguns seguidores conseguiram fugir e, nesse ínterim, alvejaram o Coronel Genuíno, que veio a falecer de hemorragia.
Escondidos na mata sofreram novo ataque pelos militares, mais ou menos no mês seguinte, pois foram denunciados por um ex-integrante da seita, que os traiu, e assim, acabaram chacinados pelos soldados.
O caso dos muckers foi contado em perspectiva histórica pelo pesquisador Padre Ambrósio Schupp e pelo historiador Leopoldo Petry, assim como, no plano artístico, serviu de argumento para a produção cinematográfica dos diretores Jorge Bodanski e Wolf Gauer, em 1978, intitulado Os Muckers. A literatura também se dedicou à representação ficcional romanesca do episódio na obra do romancista Porto Alegrense Luiz Antônio da Assis Brasil, intitulada Videiras de Cristal, que foi levada novamente ao cinema em 2003, pelo cineasta Fábio Barreto com o filme intitulado A paixão de Jacobina, baseado na obra literária do escritor gaúcho.
O filme, A paixão de Jacobina, traz uma visão bastante estereotipada do que seria a imigração dos alemães do Rio Grande do Sul, e exagera nas cenas em que a atriz Letícia Spiller interpreta a Jacobina, o que deixa o espectador acreditando ser uma louca mesmo, profana e desvairada, com aquela coroa de flores na cabeça recitando capítulos da bíblia em cima de árvores.
Um dos grandes problemas de abordagens de temas históricos em obras artísticas como o cinema é o risco de construir um imaginário que, ao invés de contribuir para melhor compreensão de nosso passado, acabe se distanciando do que efetivamente ocorreu, criando imagens equivocadas de pessoas e acontecimentos.
No filme de Barreto é possível observar uma Jacobina em dupla faceta, quando, por exemplo, depois de casada, trai o marido com Franz, na cena da cascata. Depois ela se arrepende e se sente impura, expulsando o amante. Quer a purificação, desistindo de seus desejos carnais e tirando a roupa diante do crucifixo, dizendo que pertence a Jesus. Ao mesmo tempo em que se vê Jacobina humana e mulher, normal como qualquer outra, cria-se ao redor dela uma intenção pecaminosa, desvirtuando o que se imagina de Jacobina real: uma mulher preocupada com a espiritualidade e o bem-estar do próximo, como os seus seguidores a viam. Nesse aspecto, a ambigüidade está presente. A paixão de Jacobina é uma paixão como a de Cristo, ou é uma paixão carnal?
Por outro lado, o cinema não tem obrigação de relatar os fatos, passo a passo, pois seu compromisso está ligado à arte. Ao filme devem ser incorporados novos elementos, ocorrendo daí novos significados. Também não se pode cobrar uma fidelidade, se baseado em romances, pois configuraria uma cópia oral e visual da narrativa escrita. A mescla de vários elementos envolvidos, aliados à criatividade e ao inusitado, se constitui numa nova obra.
Como narrativa histórica, A paixão de Jacobina tende a seguir a visão do Padre Ambrósio, recontada pelos colonos e outros que viveram à época. Mas tanto os registros históricos, como a obra literária Videiras de Cristal denotam o desamparo sofrido pelos colonos, o que não se viu no filme.

4 comentários:

  1. Nara!!!

    O texto sobre a saga dos Muckers ficou muito bem elaborado. Parabéns!

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  2. Nara, parabéns pela bela reflexão. Além do conteúdo, teu texto está muito bem escrito.

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  3. Nara!

    Parebéns! Suas ideias foram muito bem colocadas no texto.

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  4. Nara, muito bom seu texto! Parabéns!!!!! Concordo com suas reflexões a respeito do filme e do livro.
    Um abraço
    Tânia

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